terça-feira, 15 de setembro de 2009

O Golfinho por Noctiluca



Como mencionei em postagem anterior o site argentino de Pepe Fuora de Borda está fazendo mais um concurso de contos maritimos. O site publica os finalitas dos concusos anteriores. O conto ganhador de 2007, publicado sob o pseudonimo de Noctiluca(que quer dizer fosforecencia marinha), é simplesmente maravilhoso e resolvi fazer um esfoço de traduzi-lo para o português. O original pode ser acessado pelo link
http://www.pfdb2.com.ar/cuentos/103-cuentos-cuarto-certamen-literario-2007/311-el-delf-noktiluka-primer-premio.html

O Golfinho

Dizem que foi visto em Fortaleza.
Dizem que está preso em Hout Bay.
Dizem que voltou ao Rio(da Prata), mas já não se deixa ver.
Que morreu de uma facada numa briga de bar. E de um infarto na cama de uma puta de Gibraltar.
Eu sei que minha vida não é a mesma desde que se foi.
Minha vida não foi a mesma desde que o conheci. Desde aquele dia na casa de José, naquela festa desmedida, na qual não faltava ninguém, nem mesmo ele.
Jose me apresentou e imediatamente o esqueci, para seguir dando voltas no salão, em busca de outros portos de melhor abrigo onde aportar.
Nunca teria me interessado por alguém como ele. Cabelo negro, revolto, longo e puxado atrás das orelhas, deixando ver uma única argola de ouro do tamanho de uma moeda. Negra a barba aparada. Negro os olhos. Sombrio o olhar. Negro o coração. No bíceps tenso, a tatuagem de uma asa de águia.
Nunca o teria escolhido, mas ele me escolheu. Me observou, me estudou, me seguiu, me perseguiu, me tomou como uma ave de rapina a sua presa indefesa.
Nunca teria me interessado, mas no entanto ...
Navegamos proa ao norte, com a genoa e toda a mestra, com as escotilhas abertas, para receber do Sudeste, uma brisa leve, mas suficiente para nos deslocar com aquele ronronar sibilante que só um veleiro na água salgada pode emitir. As ondas grandes e longas nos empurram com suavidade.
A lua cheia se reflete na camisa branca, ainda mais branca contra a pele escura. Morenos, os dedos grossos seguram a roda do leme. Tensa, como sempre, a asa negra no bíceps. De tanto em tanto uma onda nos alcança e quebra delicadamente contra o cockpit, salpicando os pés morenos. Anda descalço. Eu também. Descalços os dois, meus pés pequenos, pálidos e quase gelados, junto aos dele. Um calafrio me invade com cada borrifo de espuma, que embarca pela popa do 36 pés. Está fresca a noite estival.
Há muitas horas zarpamos de nossa última escala, o porto de Mar Del Plata. Atrás ficaram os molhes, a praia Grande, "la Perla" e "el Torreon". Já atravessamos "la Canaleta" e o ruído da rebentação, também já ficou para traz.
Adiante nos espera o Rio, com sua onda curta e desencontrada, sua costa sempre a vista, as luzes, o calor.
Estamos atravessando a baia de Sanborombon. Ao redor, só água, lua e um tardio golfinho, que desenha seu lombo em um verde limão fosforecente, ao roçar as noctilucas, enquanto busca se acercar curioso. Nos vem seguindo desde Quequén. Será o mesmo? Parece não querer ir embora. Nos cruza a proa, se coloca em paralelo a estibordo. Põe pra fora o nariz na popa e mergulha para bombordo. A linha cintilante verde limão de seu lombo vai e vem, desenhando losangos infindáveis a nossa volta.
Adiante, cada vez mais perto, nos esperam, outra vez, rumores, maldades, invejas, cobiças. Não cobiçarás a mulher do próximo, diz a ele a Bíblia. E a ela? Esta certo cobiçar o homem da próxima? Por acaso está certo?
Adiante, cada vez mais perto, nos espera o Rio. E em algum cais de San Fernando ...

A proa corta a água em dois bigodes fosforescentes. Da cabine chega a voz de Aute (Luiz Eduardo Aute)cantando que me quer com aleivosia (maldade).
Com maldade o quero eu!
Pouco me importa o que o Rio diz dele. De nós. De mim.
Como poderia explicar ao Rio que somos dois mundos em fusão incandescente.
Que eu nunca tinha navegado e agora vivia no barco com ele, de porto em porto, de rio em mar.
Que uma noite, lhe pus um par de sapatos e o levei ao Colón. Que era a Norma de Bellini. Que na Casta Diva ele chorou.
Que compartilhávamos Sabina (Joaquim), Chopin e Falú (Juan). Que bailava flamenco, sapateando no convés de aço, enquanto batia palmas e se ria às gargalhadas de puro prazer. Que me contava historias de além mar, de lulas gigantes, luzes de Santelmo, baleias brancas e do Leviathan. Que eu lhe recitava Whitman, Vallejo, Dario e Patxi Andion e ele me ensinava a desfrutar a glória de Maradó. Que comíamos corvina, recém pescada, de Necochea a Angra dos Reis. Que tomávamos cerveja gelada em águas cálidas e sopa e vinho nas águas do sul. Que nos amávamos como coelhos na toca na cabine de popa e como gaivotas no convés ao sol. Que nos portos o odiava quando voltava cheirando a outra e chorava quando ia embora, me deixando só com a minha mágoa.
E que era feliz! Que a vida tinha se convertido em um copo de água fresca e eu até então morria de sede.
Pouco me importava se tinha que pagar por ele. Era tão pouco perto de tanto que me dava.
Pouco me importava as garrafas vazias de gim, tequila e whisky esparramadas aqui e ali.
Pouco me importava que sua mão forte, apertada em minha nuca, golpeasse minha cabeça contra uma antepara de quando em vez.
Assim era ele.
Que digam. Que falem. O que sabem?
Só eu o posso entender. Eu O comprendo; O decodifico; O abarco; O contenho. Como o cálice ao sangue de Cristo. E ele me ocupa; Me faz plena; me define; me ativa. Como um homem a uma mulher.
Se dizem bêbado, eu digo que se levantem antes de falar.
Se dizem violência, eu digo paixão.
E digo que ele é meu, que é o meu homem e eu sou sua mulher!
Poderá ela com tudo isso?...Não vai agüentar!

O golfinho tardio já vem navegando a um bom tempo ao nosso lado.
Acho que escolheu o lado de barlavento, pois é lá que a lua ilumina e a brisa refresca.
Não dá par ver o seu corpo, mas a linha fosforescente aparece intermitente, como um pesponto na bainha do mar. Ele se inclina e lhe fala. Ele se entende com os animais marinhos. Ele os ama e é por eles amado. Sempre temos algum lobo marinho sobre o convés, alguma toninha saltando por perto, cardumes de tainhas ou anchovas sempre junto ao casco, as vezes até um pequeno tubarão.
O Golfinho não é uma exceção. Estão aí os dois conversando. Do que falarão? Ele se inclina sobre o guarda-mancebo até ficar bem perto do golfinho, como se lhe fosse contar um segredo. Não devem estar falando de mim. Não seria necessário ficar de tão perto para falar de mim. Olho os meus pés, pálidos e gelados, que suportam tudo por ele. Olho as minhas mãos, ontem macias e finas, hoje ásperas e nodosas. Quero ler o meu coração e encontro um poço escuro. A brisa me chama a realidade, roça em minha face uma mecha de cabelo cor de palha, contando-me parte do segredo, fazendo soar um nome de mulher. Não é o meu.
Devo confessar que o sabia mesmo antes de zarpar.
Sabia que meus dias estavam contados. Que nossa escapada apenas me havia comprado mais alguns momentos agônicos. Que entusiasmados pela travessia, mais do que um pelo outro, partiriamos entre a meia noite e o cantar dos galos, justo quando o Rio adormecia. Que navegaríamos sem descanso, longas singraduras. Que entraríamos em Mar Del Plata e em seguida em Quequén. Nos reaprovisonariamos em Madryn, onde o vento quase nos impediria de entrar no porto. Que, no Náutico de Comodoro, nos agasalharíamos com um cordeirinho assado regado com um bom tinto de Chubut. E que, no porto de Ushuaia, haveria uma amarra livre a nossa espera. Que nos encontraríamos com Guerry, que nos levaria, com seu cão e sua 4x4, caçar perdiz. Que, no Beagle, perderíamos nossos copos de vinho em uma repentina adernada, açoitados pelo Wiliwaw. Que, em Puerto Almanza, fundearíamos em uma enseada e iríamos, com o dingue, até a costa, onde despencaria um toró, enquanto juntávamos lenha para assar a perdiz. E, em Puerto Williams, trocariamos com os pescadores, um balde de centojas vivas por um par de garrafas de vinho barato e que tomaríamos uns piscos, no boteco do porto, com uns brasileiros que vinham de tão longe e com uns noruegueses que vinham de mais longe ainda. Que Harberton seria um remanso para descansar. Que o Farol do Fim do Mundo nos esperava com uma tempestade. Que aportaríamos, de regresso, outra vez em Comodoro, em Quequén e Mar Del Plata e que toda costa Atlântica nos veria passar. E que este seria nosso canto do cisne. Já o sabia eu, antes de zarpar.
E ele agora o está contando ao Golfinho. Lhe está contando de quando chegar de novo ao Rio. De um encontro em algum cais de San Fernando. De uma cabeleira sedosa e de mãos suaves e finas. De pés provocantes, calçados em saltos altíssimos. Da frescura da pele. Da inocência na alma. De dez anos menos no corpo e no coração. Não lhe está falando de mim.
O tardio Golfinho vai se distanciando devagar e ele se inclina cada vez mais. Está dependurado no guarda mancebo como um acrobata deitado sobre a corda bamba. Quer segurar o Golfinho, que se lhe escapa fazendo, ao redor de suas mãos, graciosos desenhos verde limão, brincando com ele mas sem se deixar agarrar.
Ela nunca poderá entender a sua linguagem animal.
Ela nunca o poderá conter. Nunca o poderá abarcar.
Ele é meu.
Neste momento decido que ele o será para sempre.
O Golfinho se vai em direção ao leste, assustado pelo mergulho. Um contorno fosforescente de espuma marca o lugar de um bracejar desesperado e hipnotiza os meus olhos que olham fixamente sem nada ver. Estou congelada em uma tomada final cinematográfica, com as mãos nodosas agarradas ao guarda mancebo, bem onde ele antes se inclinava.
Desvanecida a espuma me parece ver uma linha verde limão de um rastro se deslocando sob a água em direção a leste pela esteira deixada pelo Golfinho... Não tenho certeza... Pode ser minha imaginação... Aqui em baixo se apagou toda a atividade...
Passados alguns minutos a obscuridade é total. A lua desaparece. Nenhum rastro fosforescente para se reunir a algum Golfinho.
Firmo a roda do leme, caço as escotas para orçar ao encontro do vento que chega e cujas rajadas se desenham na água logo adiante.
De dentro da cabine, interminável, Aute, continua a me querer com aleivosia.
A cada tanto uma onda irrompe suavemente no cockpit esparramando noctilucas nos meus pés descalços e me trazendo lembranças do Golfinho...
Ainda estou em Samborombon.
A frente me espera a proteção do Rio, a onda curta e desencontrada, as luzes, a costa, o calor.
E a triste certeza de que a partir de hoje ele me pertence para toda a eternidade.
Dizem que o viram em Valparaiso.
Dizem que está internado em um hospício em Trinidad.
Dizem que voltou ao Rio mas que não navega mais.
Que morreu de pneumonia em Fernando de Noronha e de AIDS em um hospital no Senegal.
Que em noites de lua se vêem dois Golfinhos em Samborombon.
Eu sei que minha vida não é a mesma desde que ele se foi. Nunca mais será a mesma!


Te quiero con Aleivosia Luiz Eduardo Aude

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